Uma Defesa (Intransigente) do Processo Iniciático na Maçonaria
Nada melhor do que a célebre interrogação de Joseph de Maistre, na sua Memória ao Duque de Birunswick (1728) para nos inundar no paradoxo da negação da via iniciática e nos facilitar uma demonstração pelo absurdo: “Qual a origem de estes mistérios que não ocultam nada, destas figuras simbólicas que não representam nada? o quê! homens de todos os países reúnem-se, talvez desde há vários séculos, para se co1ocarem ordenadamente sobre duas filas, jurar nunca revelar um segredo que não existe, levar a mão direita ao ombro esquerdo tornar a trazê-lo para a direita e depois sentarem se à mesa para comer? Não podemos distrair-nos, comer e beber desmedidamente sem falar de Hiram, do templo de Salomão e da estrela flamejante?”
Permitam-me, meus queridos Irmãos, que leve ao cume do absurdo o que sugere Joseph de Maistre.
Sim, para se comer e beber bem haverá círculos gastronómicos melhores, onde naturalmente não se levantarão problemas com alguns Irmãos nossos de carteiras menos recheadas, porque a esses restaurantes eles não irão… e nesses banquetes são conversas moles, profanas, as que menos dificultam a digestão… Ora isto é completamente diferente do verdadeiro Ágape maçónico.
Etimologicamente, Ágape significa o amor altruísta ou como foi utilizado pelos primitivos cristãos, o amor sobrenatural entre Deus e os Homens ou dos Homens entre si como filhos de Deus – é o amor espiritual da caridade, no seu sentido pleno, amor da família divina, dos homens como filhos de Deus, e extensivo à refeição onde reine esse amor. Em termos maçónicos, designa a refeição ritual após uma celebração, em princípio obrigatória, simbolizando uma recreação em comum, merecida após o trabalho e presidida pelo Venerável Mestre. Ora se for isso que fizermos, o sabor da refeição é excelente, mas é outro…
Mas há também quem diga que a Maçonaria é uma Fraternidade, e é uma forma excelente de arranjar amigos… subir na vida… negócios… e atingir uma hierarquia…
Vejamos por partes:
Amigos
Muito mal vai o homem que, chegando os 21 anos, não tenha arranjado por si mesmo amigos suficientes, ao ponto de, para os ter, necessitar de entrar numa Fraternidade. De facto há entre nós uma extensa, uma profunda, uma peculiar amizade, por uma razão não profana, mas sagrada: sermos todos irmãos porque filhos do mesmo Princípio Criador praticando o mesmo ritual e à sua glória. Fraternidade sim como filhos do mesmo Deus. A Fraternidade é assim a consequência dum princípio, e por natureza do próprio princípio, extensiva a toda a Humanidade e ao Cosmos.
Arranjar negócios, influências, e coisas que tais
Não sou por ineficácia total nesta área um perito ideal para me debruçar sobre este assunto, mas, com ou sem modéstia, sou suficiente perspicaz para me dar conta que como “lobbies” de influência nesta área, a Maçonaria portuguesa felizmente – e sublinho felizmente – ainda será pobre. E Deus queira que por desígnios do Supremo Arquitecto do Universo ela continue pobre mas de camisa lavada.
Subir na hierarquia? Dois aspectos se levantam, o primeiro no mundo profano e esse tem que ver com o ponto anterior. O segundo, diz respeito ao orgulho da “cordonite” e é uma pueril, quando não néscia confusão entre a ambição da elevação hierárquica profana com a elevação hierárquica maçónica, que é, antes do mais, uma maior responsabilidade para si e um maior serviço aos outros.
Quando entenderemos nós todos, no íntimo do nosso ser, que a única hierarquia maçónica é a iniciática, os três graus do processo iniciático? Ao desempenho de funções simbólicas ritualistas, o “officium”, foi no séc. XVIII e por via francesa, erradamente transposto para termos da época, devido à grande influência do mundo profano e militar, por “oficial”, quando o seu verdadoiro sentido é o de “oficiante”. Os nossos irmãos que desempenham funções no espaço sagrado da loja são oficiantes de desempenhos simbólicos. O respeito que após abertura dos trabalhos lhe devemos é pelo papel de que estão investidos, pois o desempenho dessas funções, qualquer que seja o seu nível, não lhes confere um novo grau e não modifica em nada o que eles possuem; a função tem em si, em termos sagrados, “um carácter acidental”.
Outros afirmam que a Maçonaria é eminentemente uma Associação Filantrópica e de Beneficência ou como hoje sói dizer se una Instituição de Solidariedade Social.
Aí, perdoem-me, mas existem sem dúvida outras Instituições onde as razões custos / benefícios são seguramente mais eficazes…
O que nos resta como núcleo primordial organizador da instituição maçónica?
Ser uma instituição moralizadora do Homem?
Se atribuirmos à palavra moral o seu valor semântico e histórico, a Maçonaria forçosamente se confundiria com uma Religião, A não percepção duma diferença essencial de natureza e de processos espirituais tem sido a causa de controvérsias e dificuldades e muito sofrimento com algumas Religiões.
Quando o Duque de Sussex, Grão Mestre da Grande Loja Unida de Inglaterra em 1843, declara que a Maçonaria não é pertença de nenhuma religião, 30 anos depois da unidade entre os Ancients e os Moderns terem chegado ao Acto de União em 1813 permitiu pela primeira vez que e iniciassem homens de religiões não ocidentais, ou seja, para além de católicos, anglicanos, protestantes e judeus, não deixou nenhuma porta aberta a um eventual sentido integrador, ou seja, como se a Maçonaria pudesse ser a futura “Cidadela das religiões”, a defensora da unidade religiosa, ou melhor, trans-religiosa, o que nos permitiria falar numa espécie de síntese universal das religiões, e na sua consequente acção ecuménica.
É um equívoco ainda hoje perigosamente frequente pois que confunde as duas vias e os dois métodos tradicionais de abordagem ao sagrado à espiritualidade, ao aperfeiçoamento moral e a Deus – a via e o método religioso, a via e o método iniciático. Por serem dois domínios e vias distintas, por natureza, como diz Guenon, não podem, não tem, não devem entrar nem em oposição, nem em concorrência.
Assim se compreende porque toda a moral, é de essência religiosa, pois não implica nenhuma identificação e deixa sempre subsistir a dualidade entre o sujeito e o objecto, a bem dizer, aliás, é de algum modo necessário que assim seja, pois esta dualidade faz parte do ponto de vista religioso. Pressupõe uma atitude passiva de aceitação dualista, enquanto o aperfeiçoamento Maçónico é o da interioridade do ser, é a busca do divino em si e da sua unidade com o Cosmos e com o Grande Arquitecto do Universo.
Entramos no âmago da essência maçónica. Ao contrário da religião, por natureza exotérica, o que quer dizer aberta a todos sem excepção, a via iniciática é exotérica, ou seja, branco no preto, o interior, o fazer entra no interior, por natureza reservada a eleitos, escolhidos pelas suas qualificações com um carácter elevado de critérios que disciplinam a exclusão e a inclusão neste método espiritual.
A via iniciática, ou gnose, é um saber sagrado que pertence ao Ser, e é secreta pois está escondida ou oculta na natureza íntima de cada homem ignorante ou sábio orgulhoso ou humilde. Ninguém, senão o próprio, possui a chave que a fecha e guarda, ou seja que pode abrir a faculdade espiritual que conhece melhor de si dentro de si, o divino no homem. É uma via activa que, sem esforço individual nunca se inicia nem pode decorrer o processo iniciático. É uma via não mística, pois que esta é por natureza passiva tal como a religiosa.
Ajudado pelos iniciados que o procederam, captará, adivinhará ou sentirá intuitivamente o sentido dos símbolos e a impulsão dos ritos, iniciando se progressivamente, interminavelmente, regressando sempre como bom mestre a aprendiz, e como bom aprendiz desejando ser mestre de si mesmo. É uma linguagem do coração, símbolo da verdade e do amor que se manifesta na intimidade do ser.
Sim, a Maçonaria é efectivamente uma Sociedade Tradicional Iniciática. Recordo vos que, na Declaração Solene que efectuámos antes da nossa iniciação, nos obrigámos a respeitar e a cumprir fielmente a Regra dos doze pontos, resumo dos Landmarks efectuado pela Grande Loja Nacional Francesa. Logo no 1.º ponto nos diz que “A Maçonaria é uma fraternidade iniciática que tem por fundamento tradicional a fé em Deus, Grande Arquitecto do Universo; no 2.º, que nos pede “o absoluto respeito das tradições específicas da Ordem”, no 4.º que explicita que a Maçonaria visa “pelo aperfeiçoamento moral dos seus membros o da humanidade inteira”, e, sobretudo no 5.º quando declara que “A Maçonaria impõe a todos os seus membros a prática exacta e escrupulosa dos ritos e do simbolismo, meios de acesso ao conhecimento pelas vias espirituais e iniciáticas que lhe são próprias” e isto tudo para como se expõe no ponto 9.º cada irmão esteja “apto a reconhecer os limites do domínio do homem e o infinito poder do Eterno”.
Sim, efectivamente, a Maçonaria é uma Sociedade Tradicional Iniciática, e é o processo iniciático individual e comum que nos permite a todos jantar em conjunto após os trabalhos, que entre nós reine um profundo amor fraterno que nos une numa amizade ímpar e especial que, para além do respeito pela hierarquia funcional sagrada no Templo, somos irmãos em profunda igualdade e sem nenhuma diferenciação porque, na enorme diversidade de cada um de nós, somos obreiros no plano do Grande Arquitecto do Universo, no desejo de “reconstruir o Templo do Espírito, sob a sublime lei do amor e do serviço, sem esperanças calculistas de recompensa, mas pura e simplesmente à Glória do Grande Arquitecto do Universo, tal como vem no Salmo 115, 1 – “Não a nós, Iahweh, não a nós, mas ao teu nome dá Glória, por teu amor e tua verdade”.
Se de facto nos iniciarmos, não cairemos nem na bebedeira materialista nem numa visão à tio Patinhas, ou seja, de visualizarmos os outros em cifrões e em ouro, e na contrapartida de vantagens para nós. Nada disto impede a nossa realização no mundo profano, pois o verdadeiro iniciado maçónico não está, não pode estar asceticamente fora do mundo.
Gostaria, para finalizar, de pontuar sinteticamente alguns aspectos essenciais para a consecução do processo iniciático. São pontos que merecem um outro desenvolvimento, e fica aqui, e desde já, um desafio a todos nós, e a mim próprio, para em comum ou individualmente, os trabalharmos.
Em primeiro lugar uma percepção mais clara do que é o processo iniciático em Maçonaria, sem a qual obviamente iremos defraudar a essência da nossa Sagrada Ordem, como Fraternidade Iniciática – e; sublinhe se, que não é uma Fraternidade de Iniciados, mas Iniciática. A questão que estou a colocar reduz se quase a uma questão de oferta e procura. Porque a Maçonaria é, deverá ser, uma sociedade de eleitos, e de modo nenhum de elitistas. Eleitos, no sentido de escolhidos pela própria Ordem, como pessoas aptas para seguir o processo iniciático maçónico.
Teremos que aprofundar a compreensão do processo iniciático que abarca a transmissão iniciática, a cadeia iniciática, a assimilação iniciática, a questão da hierarquia iniciática e da hierarquia oficiante, a utilização do processo simbólico e ritualista, as etapas espirituais da purificação maçónica e no ponto de vista formativo a relação Iniciação – Ensino Iniciação – Processo interior, etc. Isto são questões essenciais, sem as quais não saberemos o que estamos a oferecer e quem escolher – eleger – para o realizar e para o transmitir. A Tradição Iniciática é essa transmissão ininterrupta sem a qual mesmo que haja regularidade administrativa não há regularidade espiritual, sem a qual o próprio processo iniciático se profaniza e morre.
Só assim se poderão entender os critérios de aptidão dos futuros candidatos, habitualmente designados por Princípios de Qualificação e Reconhecimento Iniciáticos.
Fique claro que não estamos a falar em saber profano, em psicologia, psicanálise e sociologia etc., estamos a referir um conjunto de saber reunido em milénios pela Ciência Sagrada Iniciática. É falsa a via que alguns pretendem de que só se inicia quem soltar a sua interioridade, sem conhecimento, sem estudo profundo prévio, sem balizas ou sem marcas e extremas. Mais uma vez temos de recorrer a René Guenon quando ele conclui que ninguém se inicia pelo estudo, pelos livros, mas que há um uso iniciático do estudo e dos livros.
Já dizia Ragon, um irmão nosso do séc. XIX, no seu Ritual do grau de Mestre que “Nenhum grau conhecido não ensina nem descobre a verdade; somente ele retira a espessura do véu… Os graus praticados até hoje fizeram maçons mas não fazem iniciados”. Ou como nos disse recentemene, ainda em 93, o nosso irmão Vale Amesti, num livro que muito recomendo, “Le Retour de Henoch ou la Maconnerie qui revient…”, duma forma amargurada, mas simultaneamente cheia de esperança: “Abrir as portas sem discriminação converte a ordem numa fábrica de maçons de opereta, de profanos brincando aos maçons e profanando a augusta majestade dos seus templos, pois, acrescento, segundo a conhecida sabedoria judaica, “toda a coisa corrompida tende pela sua própria natureza, a corromper o que é santo”.
Se calhar o que eu pretendo dizer, V:. M:. e meus QQ:. II:., torna-se mais claro se nos debruçarmos um pouco sobre a relação do iniciado com o símbolo.
É importante insistir que sem uma reevocação de sentidos perdidos, a maioria das pessoas são actualmente verdadeiros analfabetas da linguagem simbólica. E por esta razão que firmemente discordo, e quero dizê-lo aqui, de alguns nossos irmãos, quando dizem que se deve a cada um deixar a liberdade da interpretação que lhe faça sentido, que logo à partida deve ser individualizada. Sem a instrução de sentidos e de significados, sem essa base histórica sem ensinar a ler os símbolos, calmos em disparates ou no que gosto de designar por birutices esotéricas. Há uma imperativa necessidade de formação maçónica nesta área que forneça capacidade de leitura simbólica, que instrua no sentido pleno da palavra e isto não tem que ver com inculcar nada com dogmatizar nada, mas criar condições que permitam sugerir e motivar a eclosão da transcendência intuitiva personalizada, após esse conhecimento preliminar.
De facto a Maçonaria não ensina a verdade, nem há uma verdade maçónica, propõe é um método, para o encontro com a verdade interior, que é a essência do método iniciático e simbólico, ou seja, em que se apresenta uma significação objectiva e visível (e esta deve ser bem conhecida), por detrás da qual se esconde outra significação mais elevada profunda, invisível e inexprimível. É simplesmente por esta razão que o verdadeiro segredo maçónico não é revelável e, nesse sentido, é quase um contra senso afirmar a sua existência. Mas os símbolos são “cavalos para andar mais depressa” no dizer tibetano, mas são também orientadores que conduzem o pensamento numa orientação determinada, num olhar para a verdade e o amor que se esconde na caverna do nosso coração.•
Um último ponto que pretendo salientar é o da especificidade do simbolismo maçónico.
Temos visto, ouvido e lido muita polémica sobre qual o simbolismo nuclear maçónico. Que tem que ver os mistérios de Eleusis dizem uns, que tem que vir com os mitraicos dizem outros; que se calhar vem dos mistérios egípcios, mas não, que vem da escola neo-alexandrina. que é a cópia da gnose judaica, a cabala, pelo contrário, que é pura gnose cristã, etc., etc., etc. O séc. XVIII, na redescoberta da antiguidade e num gosto “Kitsh”, favoreceu estas falsas geneologias, acrescentando outras rosa crucianas, templárias, etc.
Todas essas organizações iniciáticas ou pseudo-iniciáticas deram, indiscutivelmente, a portes ao simbolismo que hoje usamos maçonicamente. Contudo não podemos tomar o acessório e tantas vezes o supérfluo em relação ao que é essencial e, se bem utilizado, mais do que suficiente. Refiro me à necessidade da defesa intransigente da especificidade do simbolismo da Tradição Maçónica sem a qual não mereceria a designação de Maçonaria, em nós de pedir-mos.
“A Maçonaria consiste em elevar edifícios sobre as suas bases. Sós somos maçons espirituais”, insistia Guenon. Ou seja é a utilização em plenitude dos trabalhos simbólicos ligados ao ofício que caracteriza a Maçonaria e que temos de defender como a mais sagrada tradição a preservar, se quisermos manter a identidade iniciática maçónica.
São estes os pontos nodais das Lojas Azuis, das Lojas Simbólicas, são estes pontos que no fundo justificam o nobre princípio maçónico de que não se escolhem candidatos para serem bons aprendizes mas sim para poderem vir a ser bons Mestres.
Em conclusão, a Maçonaria é uma Sociedade Tradicional Iniciática, guardiã e transmissora de princípios sagrados com um método iniciático próprio.
A Maçonaria também e sempre defendeu o Progresso, a Ciência e o Saber. Aceitação vigorosa do progresso no sentido tradicional do termo, ou seja, de tudo que contribua para o aperfeiçoamento do homem e das suas condições de vida mas que preserve a unidade sagrada do homem com o Cosmos, obra do Grande Arquitecto do Universo. É para a Maçonaria um desiderato nuclear fazer coincidir a Tradição com este tipo de Progresso.
Querido Irmão: Defendamos a função espiritual da Maçonaria! Uma Maçonaria sem ter como sua essência a via iniciática é como uma circunferência sem centro… Que esta alegoria nos atinja em todos os nossos graus e qualidades.
Nesta Loja, onde reina uma franca fraternidade maçónica e onde se vive, em alegria, o comum desejo de aperfeiçoamento, aqui fica não só o meu reconhecimento como vosso irmão e como obreiro, Pedra que sou do Templo que sou convosco, mas aqui também quero deixar como intransigente desejo, esta pequena metáfora:
“O corpo do homem é uma Loja ou um Templo, que é a repetição do Templo Geral, particular e universal. Todos os seres provenientes do Criador são Templos. Mas, meus irmãos, é preciso distinguir as verdadeiras Portas do Templo”.
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