Intocáveis

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INTOCÁVEIS

V:.M:., meus II:. em todos os Vossos GG:. e QQ:.,

Tenho para mim que a vida em L:. contempla a troca de experiências vividas e de emoções sofridas, na partilha dos sentimentos que nos assaltam nas voltas da vida.

E por pensar assim pedi ao nosso Q:. V:. M:. autorização para Vos falar de emoções, porque é apenas disso que se trata.

Por um acaso completamente inesperado tive a oportunidade de poder participar numa viagem pela Índia cujo objectivo central foi uma peregrinação pelos caminhos percorridos por S. João de Brito.

Foi uma experiência apaixonante sob este aspecto, a história da introdução do cristianismo naquelas regiões e povos e a acção dos portugueses Francisco Xavier e João de Brito.

Assim como emocionante foi o encontro dos sinais da nossa presença na Ásia com que me deparei por toda a parte.

Constantemente “tropeçava” em símbolos portuguesíssimos (o escudo português, armas e brasões de portugueses, escritos portugueses e a arquitectura, particularmente em templos Cristãos Católicos construídos por portugueses, lindíssimos a maioria deles e conservados impecavelmente.

Mas foi muito mais do que isso.

Se há um mês Vos falasse sobre algum “intocável” estaria certamente a referir-me a algum desses figurões que se passeiam pela vida pública nacional, seja o Sr. P. da Costa, o Sr. Melancia ou qualquer um dos muitos outros que conhecemos.

A Humanidade é supostamente constituída por Humanos.

Trata-se de um conceito que não é questionado já que, aparentemente, isso constitui a sua própria definição.

A minha passagem pelas voltas da vida tem-me trazido algum conhecimento das relações humanas, mas constatei agora que quando por alguma razão falava do 3º mundo e de miséria, não fazia realmente ideia do que falava nem ao que me referia.

Meus II:., posso agora dizer-Vos que há uma humanidade que eu desconhecia por completo e que não é de Humanos.

O Ser Humano é por definição alguém, não alguma coisa.

O Ser Humano tem por natureza direitos inalienáveis, por mínimos que sejam, que resultam desde logo da Sua condição de ser humano.

Pois encontrei Seres Humanos diferentes, tão diferentes que não sei se serão humanos. Para os quais não há Humanidade, para os quais não há direitos inalienáveis, que de facto são coisas e coisas que nada valem.

É o outro lado do conceito de “intocável”.

Na Sociedade Indiana o “intocável” é-o na verdadeira acepção da palavra.

Esqueçam os “intocáveis” Srs. P.C., Loureiro, Melancia e companhias, esqueçam os outros Srs. intocáveis que por aí andam.

O “intocável” é um animaleco humanóide, dedicado exclusivamente à miséria, que a própria família muitas vezes mutila propositadamente à nascença cortando uma mão ou um braço do bebé, para que este possa vir ser um profissional da miséria ainda mais miserável, quiçá mais profissional.

O “intocável” é-o porque não pode ser tocado, nem com o olhar…

É a ele que competem os trabalhos mais aviltantes.

Trata da limpeza das casas dos outros, das latrinas (não há esgotos na maioria das casas !) limpando e carregando a porcaria da família da casa para outro sítio qualquer, indiscriminado.

A Família sai de casa para que o “intocável” entre, faça o que tem a fazer e vá embora.

Só depois a Família regressa.

Não há cruzamento possível.

Esta gente não tem nada, nem casa, nem escola, nem trabalho, nem saúde, nem nada. Não são recenseados, não têm identificação, não existem à face do mundo.

Meus II:., esta sociedade existe, inacreditavelmente existe.

E são 60 milhões… A organização social indiana, estratificada nas suas castas é de um racismo puro, completo e fechado (“casta” é, em português, “o que não tem mistura”) e assim é, nasce-se, casa-se, reproduz-se e morre-se brâmane, xatria, vaisia ou xudra, e não se concebe que possa haver algum cruzamento.

Nem pensar…

E abaixo de todos estes nasce-se “intocável”.

Os intocáveis sobrevivem pelas ruas e campos, vivos ou mortos por lá ficam, com direito a diariamente serem empurrados com um pau ou com os pés dos trabalhadores de recolha do lixo para confirmação de estarem vivos ou mortos.

Se se mexerem estão vivos, caso contrário vão na carroça do lixo para as lixeiras comuns e ponto final.

Não há ninguém que dê por falta deles!

É a miséria absoluta.

Ora a mentalidade que convive com esta realidade e a sustenta é demasiado diferente da minha para a poder encarar com naturalidade.

E no entanto é a mesma mentalidade que aceita com a maior pacificidade todas as diferenças das múltiplas correntes religiosas que proliferam na sociedade indiana.

Não há religião que não exista na Índia, e todas convivem no melhor dos mundos, todas sujeitas a processos de grande religiosidade, misticismo e crença.

São impressionantes os actos religiosos dos indianos naquilo que demonstram de crença nos “deuses”, mais que muitos, que adoram sincera e confiadamente.

Ora o confronto com esta realidade deixou-me uma quantidade de questões sobre o conceito de justiça do ser humano.

Porque não há justiça nesta organização.

Um Ser Humano é um Ser Humano.

Não é confundível com uma coisa que tanto pode existir como não.

O simples facto de nascer humano dá-lhe de imediato direitos.

Então como não tem?

Não sei como vai a M:. na Índia, nem sequer se está lá instalada, mas se está, tem a obrigação de perceber esta realidade de forma independente da organização social a que também ela pertence.

Não há maneira de colar este entendimento, com o meu entendimento de Fraternidade.

Não podem haver II:., mais II:. uns que outros … Ou então os princípios M:. não são universais.

Não é possível a conciliação destes conceitos.

Todo este esquema social foi um tremendo murro no estômago que me deixou algumas noites a dormir mal.

Este choque que agora partilho convosco não tem rigorosamente nada a ver com princípios religiosos, culturais ou seja o que for mais. Tem tão simplesmente a ver com o facto de, sendo um humano, tentar perceber a minha própria classificação animal e sentir-me pertencendo a essa qualidade. Afinal é só a defesa da raça… para que não venha a ser mais uma em vias de extinção.

Meus Q:.II:.:.em todos os Vossos GG:. e QQ:., o assunto que trouxe para junto de Vós é pouco simpático, mas ficarei mais feliz se souber que há mais II:. percebendo este tremendo drama e será um bom sinal se algum de Vós também ficar preocupado com este assunto. Serão precisas muitas vontades e muitos anos (certamente a unidade de tempo será a “geração”) para se dar a volta a este esquema, mas como em tudo, quanto mais depressa começar mais cedo acaba.

E quanto maior for o número dos preocupados, mais fácil será.

Disse, Venerável Mestre e todos os meus Irmãos!

José P:.Setúbal, M:.M:.
Fevereiro 2005

P. S.: Após a feitura desta prancha pude esclarecer que a Maçonaria Regular Indiana é muito atuante, desenvolvendo múltiplas ações de suporte social que tentam corrigir alguns dos aspetos mais chocantes referidos e mantendo um hospital pediátrico que presta todo o tipo de cuidados médicos.

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