A Identidade Social
Venerável Mestre,
Estimados Irmãos em todos os vossos Graus e Qualidades,
Idos são os tempos em que cada sociedade, cada cultura, cada etnia, vivendo no seu próprio território, alheia de outros pensamentos e modos de vida, apurando as suas próprias idiossincrasias, ignorava a própria existência de modos de vida diferentes dos seus. O desenvolvimento dos meios de transporte e o aumento do conhecimento por um lado, as guerras, o clima e a miséria pelo outro, têm empurrado uns contra os outros povos que viveram razoavelmente segregados durante séculos, senão mesmo milénios. A exposição destas diversas culturas umas às outras alterou de modo irreversível os modos de pensar, agir e viver de sociedades inteiras.
As sociedades em que hoje vivemos tornaram-se, em virtude do colapso dos modos de vida tradicionais resultante do progressivo aumento da mobilidade e da inter-miscigenação, muito mais plásticas e fluidas do que as anteriores na adopção de novos hábitos, na criação de novas rotinas, e mesmo na alteração da matriz de princípios, da própria ética social. Contudo, e abertas que estejam muitas das sociedades modernas à incorporação de artefactos de outras culturas, ultrapassadas que sejam muitas das diferenças imanentes do género, da raça e da riqueza relativa, os conflitos sociais, longe de se sanarem, parecem recrudescer. Infelizmente, tantas vezes, após os primeiros contactos, a recorrência banaliza o exotismo, a curiosidade se torna repulsa, e a proximidade quotidiana – que exacerba as arestas e o desconforto – acaba por tornar uma oportunidade de enriquecimento cultural em intolerância e em discriminação. Se é certo que, enquanto indivíduos livres, reclamamos para nós mesmos o direito à diferença, não menos certo é que, enquanto parte de um todo, retiramos conforto e segurança de saber os outros confinados a uma relativa uniformidade – e as nossas sociedades são cada vez mais heterogéneas. Não será por acaso que, por todo o mundo, os modelos de integração parecem falhar, uns após os outros – facto a que não será alheio ser a identidade social, a partilha de um conjunto de princípios estruturantes, um factor preponderante, senão essencial, à paz dos povos.
Inevitável que se tornou a globalização dos costumes e das culturas, extinto que é o isolamento geográfico das sociedades, irremediavelmente relativizadas que são as suas próprias fundações estruturantes por esse mundo fora, urge restabelecer patrimónios comuns, memórias coletivas, princípios interiorizados, passíveis de devolver o sentimento de pertença que existia nas pequenas comunidades – especialmente nas mais recônditas – mas que deixámos de encontrar nas sociedades modernas.
É nas escolas de pensamento das antigas culturas Clássicas que encontramos a génese do pensamento e identidade ocidentais contemporâneos. O homem culto do Renascimento, de que da Vinci será o exemplo mais conhecido, foi durante muito tempo considerado o apogeu de um estilo de educação que abrangia transversalmente todos os ramos de conhecimento, e que era a marca distintiva dos membros dos estratos superiores das sociedades. Lata e multidisciplinar, incidindo nos valores das culturas Clássicas, não se deixando contaminar pelas necessidades quotidianas, subsistindo enquanto suporte de si mesma, esta educação constituiu, mais tarde e por excelência, a base da formação de um gentleman. Esta última, mais do que constituir mera transmissão de conhecimentos, pretendia – e conseguia – perpetuar um certo mindset, uma certa atitude, uma certa forma de ver o Mundo, que por sua vez conferia àqueles que dela tinham bebido os ensinamentos um claro sentimento de pertença e de identidade.
Durante vários séculos, a construção de catedrais – verdadeiro apex da tecnologia e do saber – congregava todo o espectro de conhecimento de que a Humanidade dispunha. Agremiavam, para tal, os mais dotados detentores das mais avançadas disciplinas e técnicas – apenas a crème de la crème. Logo depois das mais óbvias – como a matemática, a geometria e a arquitectura – surgiam aquelas que se tornavam essenciais aos novos processos construtivos: seria impensável erigir tão altas construções sem sólidas bases de mecânica e de física; sem o recursos à metalurgia e à química não seria possível produzir as ligas metálicas necessárias; e toda a estética e ornamentação recorriam extensivamente à escultura, à pintura e à acústica, por sua vez inspiradas na mitologia, na teologia, na música, na história e na literatura. Não se podia, assim, dizer que as catedrais fossem construídas estritamente por quem trabalhava a pedra; longe disso, os “construtores de catedrais” – a quem hoje chamamos maçons operativos – eram, na verdade, os detentores dos conhecimentos complementares cuja conjugação erguia a sucessão de maravilhas arquitectónicas que ainda hoje, séculos mais tarde, nos é dado apreciar. Neste processo, pelo contacto e aprendizagem uns com os outros, apuravam técnicas, inventavam novos métodos, alargavam conceitos. Aperfeiçoavam-se.
O Mundo, porém, avançava inexoravelmente. Os avanços da técnica, o desenvolvimento das ciências, a comunicação global, geraram tal quantidade de informação, e com tal detalhe e profundidade, que impossibilitaram, na prática, que voltassem a surgir modernos da Vinci. Os estratos sociais com acesso a educação superior são hoje, curiosamente, compostos essencialmente por especialistas – de quem se diz com algum humor, mas não sem verdade, serem pessoas que sabem cada vez mais sobre cada vez menos. A especialização, especialmente a orientada para a vertente prática dos afazeres mundanos – o que era, em tempos, sinal de uma educação limitada e imperfeita – substituiu, assim, o anterior paradigma de educação; esta mudança de paradigma tornou cada vez mais rara essa nata de que são feitos os grandes estadistas, os grandes pensadores, em suma, os Grandes da História.
Entretanto, o fim da Idade das Catedrais não levou à completa debandada dos seus construtores. A congregação de áreas de conhecimentos díspares mas complementares, desaparecido o seu propósito inicial, transformou-se. As Artes Liberais, antes instrumentais na construção de catedrais de pedra, passaram, sob a égide do Iluminismo, a ser usadas para aperfeiçoar Homens. Partilhando conhecimentos, cada um deveria encontrar a sua própria interpretação do que e como pretendia aprender e aperfeiçoar, no seu próprio tempo, em consequência do seu próprio trabalho. Surgia a Maçonaria Filosófica.
Enquanto símbolo do Mundo, as Lojas encerram a sua própria diversidade. As diversas Artes Liberais, simbolicamente relegadas ao papel de discreta chamada de atenção para a nossa ignorância e incentivo a que nos tornemos mais completos e equilibrados, foram substituídas pelos diversos ofícios que a Loja comporta e que, representativos de diversos misteres, proporcionam a cada Maçon a oportunidade – muitas vezes única – de aprender e praticar distintas vertentes do conhecimento e exercer, por um período mais ou menos alargado, funções diversas daquelas que exerce no seu quotidiano. O desempenho sucessivo de funções inteiramente novas é, precisamente, uma das mais pragmáticas metodologias de melhoramento que a Maçonaria proporciona. Muito mais do que dotar-nos de valiosos conhecimentos e experiência prática a que podemos (e devemos!) recorrer no nosso dia-a-dia, não só nos ensina a tolerância ao colocar-nos em papéis que identificamos como sendo os do “outro”, como nos confere uma visão mais alargada e abrangente do Mundo que nos rodeia, proporcionando bastas oportunidades de aprofundamento dos conhecimentos que compõem a já referida educação para o gentlemanship – saiba e queira cada um debruçar-se sobre o que sente faltar-lhe e que entende ser merecedor do seu esforço.
Como se vê, a Maçonaria não toma homens bons para os tornar melhores apenas numa perspetiva íntima ou esotérica que mude estritamente no Sanctum Sanctorum de cada um e que, por isso, se torne impossível de revelar; longe disso, a Maçonaria proporciona também ensinamentos muito pragmáticos, mundanos e dizíveis – e o facto de o serem não os menoriza.
O trabalho em Loja ensina-nos a viver em harmonia, justiça e fraternidade. Identificamo-nos e reconhecemo-nos mutuamente quase que por instinto, pela palavra, pelo toque e pelos sinais – e não falo dos que nos são formalmente transmitidos, mas pelos que reconhecemos como constituindo a nossa Identidade, os que podemos encontrar por detrás dos ensinamentos que recebemos, na matriz consistente de princípios e valores que são, esses sim, talvez difíceis de definir e descrever, mas que são aquilo que identifica um Maçon.
Se, como disse já, a identidade social é essencial à paz dos povos, compete-nos a nós, Maçons, através do nosso trabalho – quer o interior quer o social – zelar por que essa identidade assente sobre boas fundações. Fizémos as nossas Lojas à imagem do Mundo; tentemos agora fazer, cada um de seu lado, o Mundo à imagem das nossas Lojas.
Disse.
Paulo M. – C:.M:. – 24 de Março de 6010