O fim da infância
“Os minutos seguintes foram dos mais complicados da história da Loja. Quase 40 Homens adultos nos braços uns do outros – não importava que caminho tinham votado – chorando“.
José Ruah,
in Um dia fui Venerável Mestre da Mestre Affonso Domingues (2)
Nesta passagem, José Ruah não exagerou nem um bocadinho! Foi assim mesmo que se passou! No entanto, ao longo de duas reuniões, com várias horas, dois grupos de membros da Loja esgrimiram razões, arremessaram argumentos, prouraram influenciar os aparentemente indecisos para a sua posição, sabendo ambos que a maioria, num ou noutro sentido, seria muito pequena. Foi uma luta leal, mas uma luta dura! Assim sendo, como foi possível que, minutos após a decisão, que determinou vencedores e vencidos, não existissem nem uns, nem outros, mas apenas Irmãos chorando as circunstâncias, despedindo-se uns dos outros, mutuamente se desejando felicidades e esperando que um dia se reunissem os que então se separavam?
A resposta está em que a Loja Mestre Affonso Domingues teve, então em escassos sete anos de existência, a felicidade e a arte de viver a Maçonaria bem vivida e, assim, criar o que é, não apenas o mais importante, mas o básico, o essencial, numa Loja Maçónica: o cimento da união na diversidade, a argamassa da fraternidade na diferença. Esses escassos sete anos bem vividos permitiram aprender – e praticar! – que discordar não implica querelar, que o respeito do outro implica a aceitação do seu pensamento, ainda que diferente do nosso, que o meu Irmão é meu Irmão não apenas quando concorda comigo, mas também quando nos opomos. E que a oposição não implica zanga, nem desrespeito, nem quebra de afectividade. Numa palavra, a Loja teve a oportunidade de aprender a Tolerância!
Um episódio anterior aos eventos de 1996 / 1997 ajuda a entender o espírito que se criara na Loja.
Ocorreu já não sei bem quando, creio que dois ou três anos antes, talvez no Veneralato do Manuel A. G.. Então, a Loja ainda se reunia nas instalações do Monte Estoril, junto ao Jardim dos Passarinhos, como nós designávamos o local. A sala onde decorriam as reuniões era muito pequena: acomodava confortavelmenteaté 15 / 20 elementos, mas, acima desse número, era francamente exígua. A Loja estava numa fase pujante, recuperada da sua fase de cansaço. A presença de obreiros nas sessões de Loja ultrapassava sistemática e significativamente o “máximo suportável” naquele espaço e era sistematicamente muito difícil “arrumar” toda a gente e conseguir garantir o mínimo de espaço para que o Mestre de Cerimónias e os outros Oficiais de Loja que necessitavam de o fazer circulassem. Várias vezes houve em que se não pôde sentar toda a gente. Resumindo, estávamos com Loja a mais e espaço a menos!
Nestas circunstâncias, era inevitável que se debatesse as medidas a tomar para ultrapassar o problema, tanto mais que, então, não se descortinava para breve a disponibilização de mais desafogadas instalações. Rapidamente se chegou à conclusão que se tinha que dividir a Loja. Essa necessidade foi consensualmente aceite. Decidido então esse passo, havia só um pequeno, mínimo, insignificante detalhe a resolver para que se executasse a consensual e necessária solução: definir quais seriam os obreiros que sairiam da Mestre Affonso Domingues e criariam a nova Loja, filha da anterior.
Aqui chegados, chegou a ser cómico de ver! Todos, mas virtualmente todos, os que, minutos antes, tinham facilmente chegado à conclusão da inevitabilidade da divisão da Loja em duas, assim que perceberam o que implicava a decisão… começaram a olhar para o lado, a assobiar para dentro, a demonstrar um súbito e irresistível interesse pela posição dos respectivos dedos nas respectivas mãos! Quando tocou a saber-se quem é que iria então sair e criar a nova Loja, ninguém se chegou à frente!
Ao fim de alguns minutos de expectante silêncio, alguém – já não me lembro quem, talvez o Venerável Mestre – declarou o óbvio: se ninguám se dispõe a sair para outra loja, então não se pode dividir a Mestre Affonso Domingues em duas…
Mal estas palavras foram ditas, pareceu que se libertou algo no ambiente: os olhares ausentes tornaram-se presentes, as caras fechadas abriram-se, as posturas hirtas descontrairam-se! E alegremente toda a gente concluiu que realmente o melhor era não dividir a Loja, que a falta de espaço não era um problema tão difícil assim, que, com mais um jeitinho ainda se acomodavam mais uns quantos, etc., etc….
E nunca mais se falou na falta de espaço nem em dividir a Loja – ideias disparatadas, obviamente!
Dois anos depois, as circunstâncias fizeram que o problema do espaço fosse o menor dos nossos problemas. Mas sempre tive para mim que o que, naquelas duas reuniões esteve, para os NOSSOS obreiros, verdadeiramente em causa não foi quem se mantinha fiel ao Grão-Mestre e quem concordava com a sua destituição. Isso foram detalhes… cada um tomou a sua decisão e só tinha de prestar contas à sua conciência. O que verdadeiramente esteve então em causa foi decidir quem ficava e quem saía!
E o que todos choraram então foi a raiva e foi a frustração de, desta vez, o problema não ter sido só de espaço (esse resolvia-se outra vez, aperta daqui, encosta dacolá…), ter sido bem mais grave, bem mais fora do nosso controlo, bem impossível de ser resolvido por nós! Foi o termos descoberto que afinal nem tudo podia ser resolvido com a nossa Cadeia de União…
Na vida chega sempre um momento assim, o momento em que somos obrigados, muito a contragosto, a aceitar que não podemos tudo. Então, chora-se de raiva, de frustração, de desgosto. Mas cresce-se!
E foi assim que a Loja Mestre Affonso Domingues saiu da infância!
Rui Bandeira
Publicado no Blog “A partir pedra” em 24 de Julho de 2007