Decisão

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Duas dezenas de homens numa sala fechada. Ambiente de concentração. Decisões a tomar. O projeto, já anteriormente decidido, já estava em andamento. Mas havia que acertar as regras do seu funcionamento. Era altura de decidir sobre essas regras. O que tinha sido proposto já todos sabiam. Noventa por cento concordava com tudo ou, pelo menos, não tinha objeções essenciais em relação ao projeto que se ia discutir. Dez por cento concordava com noventa por cento do projeto. Mas esses dez por cento tinha discordâncias quanto aos restantes dez por cento da proposta…

Parecia que não seria difícil resolver. A esmagadora maioria concordava e mesmo os que tinham discordâncias era em relação a uma ínfima parte do que se discutia.

Mas aqueles homens eram todos homens que pensavam pela sua cabeça. Privilegiavam a razão. Sabiam que nem sempre ser o maior número implica ter-se razão. Apreciavam o debate, a discussão, o sopesar de argumentos.

O debate começou. Os argumentos foram apresentados. Depois reforçados. Seguidamente esgrimidos. Um que outro, aqui e ali, mostrava entusiasmo na defesa do seu pensamento. Entusiasmo para um lado, entusiasmo para o outro, aquecia o debate entre 90 % e 10 % em relação a 10 % de discordância no meio de 90 % de concordância. Como se afinal metade pensasse branco e a outra metade apontasse negro.

Quando tão poucos discordam de tantos em relação a tão pouco, a discordância pode confundir-se com teimosia, quiçá obstinação. Quando tantos veem tão poucos a discordar em tão pouco, pode surgir a tentação de usar a força do número, a imposição da maioria. Afinal, democracia também é isso, o seguir da opção da maioria…

Mas um dos discordantes fundamentava que a sua discordância era de princípio, que até concordava com a solução, não admitia era que fosse estipulado que era obrigatória. Se assim fosse, sentiria violada a sua liberdade. Os noventa por cento consideravam que era um preciosismo, um excesso de sensibilidade. Mas pensaram de novo. Se havia quem sentisse que algo intoleravelmente feria a sua liberdade, resolver o problema era o mínimo que tinham a fazer. E, conversa daqui, puxa dacolá, tesourada à esquerda, ponto e linha à direita, lá se achou maneira de deixar claro que a regra era fazer assim, mas quem em cada momento em concreto se opusesse podia exigir assado. Ficou a regra e ficou salvaguardada a liberdade de cada um.

Depois, outro dos discordantes mostrava o seu desconforto em relação a outro ponto, à forma como se apresentava algo. Parecia a muitos um excesso de zelo, um receio demasiado, uma prudência excessiva. Mas, bem vistas as coisas, para quê arrastar um para algo que lhe parecia uma imprudência? A quase todos parecia que era prudência excessiva. Mas para quê impor ao prudente o desconforto do que ele considerava imprudência? De novo, todos pensaram melhor. E concluíram que, se o prudente não devia travar todos os demais, também todos os demais deviam atender ao temor deste. Ficou assim decidido que se avançaria de determinada maneira, mas que, especificamente em relação a quem achasse melhor que se fizesse de mais cautelosa forma, assim se procederia. E assim nem ninguém era travado, nem ninguém seguia a velocidade que considerava louca…

Já só faltava um detalhe, quase que só uma palavra. Mas aí uns achavam que sim e outros que não. Aos que achavam que sim, parecia-lhes que avançar sem algo não valia a pena. Os que achavam que não, esses entendiam que o algo era mesmo para não avançar. Aqui parecia não haver consenso possível, saída airosa, exceção exequível. Era sim ou não. Noventa por cento discordava de dez por cento quanto a meio por cento. Mas esse meio por cento constituía uma discordância insanável.

O consenso busca-se, mas não é um princípio sagrado. Sempre que é possível, deve obter-se consenso, mas, quando não é, decide a maioria. Esta a ideia que bailava na cabeça de todos. A votação estava iminente. A discussão já cansava. Eis então que voz respeitada, até então silenciosa, lembra que as mudanças não são aceites por todos ao mesmo tempo, que os novos hábitos são seguidos com maior dificuldade por uns do que por outros. E sugere que se dê tempo ao tempo. Para que quem receia tenha tempo e possibilidade de se habituar. E quiçá dissipar os seus receios. E de novo todos pensam melhor. E concluem que não há mal nenhum em só tomar a definitiva decisão, em relação ao último ponto em que não havia consenso, tempos mais tarde. Que entretanto se praticaria uma versão limitada e experimental do que muitos queriam e alguns rejeitavam, para se ver os resultados. E depois, mais tarde, se veria se as objeções permaneciam.

E assim se decidiu. E todos os homens saíram da sala fechada. E foram recuperar do esforço de tanto debater e discutir tomando em conjunto uma refeição. E, assim fazendo, de mil coisas conversaram. Menos do que tinham debatido. Isso já não era preciso. E já não havia noventa por cento nem dez por cento nem meio por cento. Eram todos. Como sempre foram. Como há muito tinham aprendido a ser, em mútuo e inabalável respeito mútuo. Porque um é tão importante como todos e todos têm a importância que cada um ao conjunto dá.

Chamam a estes homens maçons. Os que estão de fora temem a sua união. Eles constroem-na, acarinham-na, fabricam-na, dia a dia, momento a momento. Também quando discordam. Sobretudo quando discordam!

Rui Bandeira

Publicado no Blog “A partir pedra” em 28 de Outubro de 2008

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