A Maçonaria NÃO É uma sociedade secreta (III)
A Encíclica Humanum Genus, de Leão XIII (texto integral em português aqui) elenca as críticas da alta hierarquia da Igreja Católica à Maçonaria.
A primeira, não destituída de fundamento, na época, atento o acentuado anticlericalismo que a Maçonaria Liberal e então revolucionária manifestava, era a de que o propósito da Maçonaria era a destruição da Igreja:
Nesta época, entretanto, os partisans (guerrilheiros) do mal parecem estar se reunindo, e estar combatendo com veemência unida, liderados ou auxiliados por aquela sociedade fortemente organizada e difundida chamada os Maçons. Não mais fazendo qualquer segredo de seus propósitos, eles estão agora abruptamente levantando-se contra o próprio Deus. Eles estão planeando a destruição da santa Igreja publicamente e abertamente, e isso com o propósito estabelecido de despojar completamente as nações da Cristandade, se isso fosse possível, das bênçãos obtidas para nós através de Jesus Cristo nosso Salvador.
A segunda era a do perigo, que entendia nalguns casos já concretizado, do domínio dos Estados pela Maçonaria:
Em consequência, a seita dos Maçons cresceu com uma velocidade inconcebível no curso de um século e meio, até que se tornou capaz, através de fraude ou audácia, de obter tal acesso em cada nível do Estado de modo a parecer quase a sua força governante. Este veloz e formidável avanço trouxe sobre a Igreja, sobre o poder dos príncipes, sobre o bem estar público, precisamente aquele grave dano que Nossos predecessores tinham previsto muito antes. Tal condição foi atingida que de agora de diante haverá grave razão para temer, não realmente pela Igreja – porque sua fundação é firme demais para ser derrubada pelos esforços dos homens – mas por aqueles Estados em que prevalece o poder, ou da seita da qual estamos falando ou de outras seitas não diferentes que curvam-se a ela como discípulas e subordinadas.
A terceira era que considerava a Maçonaria como criadora ou veiculadora das “doutrinas dos socialistas e comunistas”, da legalização do divórcio e dos sistemas de governo democráticos e republicanos:
Nós já por muitas vezes, conforme as ocasiões surgiram, atacamos alguns pontos principais dos ensinamentos que demonstraram de uma maneira especial a perversa influência das opiniões Maçónicas. Assim, em nossa carta encíclica, Quod Apostolici Muneris, Nós Nos esforçamos por refutar as monstruosas doutrinas dos socialistas e comunistas; depois, em outra começando com “Arcanum”, Nós penosamente defendemos e explicamos a verdadeira e genuína idéia da vida doméstica, da qual o matrimónio é o ponto de partida e a origem; e novamente, naquela que começa com “Diuturnum”[11], Nós descrevemos a ideia de governo político conforme os princípios da sabedoria Cristã, que é maravilhosa em harmonia, por um lado, com a ordem natural das coisas, e, por outro lado, com o bem-estar tanto dos príncipes soberanos quanto das nações. É agora Nossa intenção, seguindo o exemplo de Nossos predecessores, tratar diretamente a própria sociedade maçónica, todo o seu ensinamento, seus objetivos, e a sua maneira de pensar e agir, de modo a trazer mais e mais à luz seu poder para o mal, e fazer o que Nós pudermos para deter o contágio desta peste fatal.
A quarta crítica é curiosa: por um lado, reconhece que os maçons se reúnem à “luz do dia e à vista do povo, e publicam seus próprios jornais”; por outro, continua a verberar o que considera serem caraterísticas de sociedade secreta, que entende ser da “natureza e hábitos” da Maçonaria:
Agora, estes não mais mostram um desejo de permanecer escondidos; pois eles realizam seus encontros à luz do dia e à vista do povo, e publicam seus próprios jornais; e contudo, quando completamente compreendidos, descobre-se que eles ainda retêm a natureza e os hábitos de sociedades secretas. Há muitas coisas como mistérios que é regra fixa esconder com extremo cuidado, não somente de estranhos, mas de muitos e muitos membros, também; tais como seus desígnios secretos e últimos, os nomes de seus maiores líderes, e certos segredos e encontros privados, assim como suas decisões, e os caminhos e meios de executá-las.
No entanto, logo de seguida percebe-se que o famoso secretismo da Maçonaria não é afinal, tão secreto assim, pois – com acerto, note-se bem! – logo se descreve em que consistem afinal os “mistérios que é regra fixa esconder com extremo cuidado”:
Os candidatos são geralmente ordenados a prometer – e mais, com um especial juramento, a jurar – que eles não irão nunca, a nenhuma pessoa, em qualquer tempo ou de qualquer modo, dar a conhecer os membros, as senhas, ou os assuntos discutidos.
A quinta crítica constitui, no meu entender, a verdadeira contradição entre a Maçonaria e a conceção do mundo e da religião da alta hierarquia da Igreja Católica, a influência do pensamento iluminista e racionalista na Maçonaria e a sua não exclusão da conceção deísta, que, em execução do princípio da tolerância, é admitida na Maçonaria, tal como o é a conceção teísta, esta a única admitida pelas religiões baseadas na Revelação Divina, e a recusa maçónica do conhecimento escolástico, em favor da ciência experimental:
Agora, a doutrina fundamental dos naturalistas, que eles tornam suficientemente conhecida em seu próprio nome, é que a natureza humana e a razão humana deveria em todas as coisas ser senhora e guia. Eles ligam muito pouco para os deveres para com Deus, ou os pervertem por opiniões erróneas e vagas. Pois eles negam que qualquer coisa tenha sido ensinada por Deus; eles não permitem qualquer dogma de religião ou verdade que não possa ser entendida pela inteligência humana, nem qualquer mestre que deva ser acreditado por causa de sua autoridade. E desde que é o dever especial e exclusivo da Igreja Católica estabelecer completamente em palavras as verdades divinamente recebidas, ensinar, além de outros auxílios divinos à salvação, a autoridade de seu ofício, e defender a mesma com perfeita pureza, é contra a Igreja que o ódio e o ataque dos inimigos é principalmente dirigido.
Mas, para Leão XIII, a insidiosa seita maçónica propala ainda mais perigosas ideias:
Por um longo e perseverante labor, eles esforçam-se para alcançar este resultado – especificamente, que o ofício de ensinar e a autoridade da Igreja tornem-se sem valor no Estado civil; e por esta mesma razão eles declaram ao povo e argumentam que a Igreja e o Estado devem ser completamente desunidos. Por este meio eles rejeitam das leis e da nação a saudável influência da religião Católica; e eles consequentemente imaginam que os Estados devem ser constituídos sem qualquer consideração pelas leis e preceitos da Igreja.
Traduzindo: os maçons pregam a separação entre o Estado e a Igreja! A dura batalha que a Igreja Católica então travava era contra a perda do seu Poder Temporal, a favor da manutenção dos Estados Confessionais, com religião de Estado, com todas as consequências a isso inerentes. Batalha essa que, pouco mais de um século volvido, sabemos que foi perdida. Hoje, a laicidade dos Estados é a regra, a Liberdade Religiosa, entendida como a liberdade de cada um ter ou não ter religião e de todas as confissões religiosas poderem livremente exercer o seu múnus é regra consensual, pelo menos nos países democráticos ocidentais. Hoje, até a Igreja Católica aceita este princípio. Há pouco mais de um século, maçons e hierarquia eclesiástica católica estavam em campos opostos neste aspeto – e verificou-se que eram os maçons que estavam no lado certo! Hoje, cabe a todos, maçons incluídos, expressarem a sua satisfação por a hierarquia eclesiástica católica se ter entretanto e finalmente juntado aos demais nesse lado certo!
Seja como seja, no final do século XIX, a doutrina da Igreja era outra, a luta entre a “sociedade antiga” e a modernidade estava no auge. Como facilmente se verifica através da leitura da longa encíclica, Leão XIII considera que os maçons são os porta-vozes daquilo a que chama “os naturalistas”, das conceções iluministas, racionalistas, experimentalistas, em contraponto ao que então a Igreja Católica representava e defendia: a escola escolástica, a superior validade da Verdade Revelada em relação às descobertas da Ciência, o direito divino de governar concedido a alguns, em contraponto à essencial igualdade de todos os cidadãos, defendida pelos cultores da Modernidade, a defesa do Estado Confessional Católico contra o Estado laico e a Liberdade Religiosa.
A condenação de Leão XIII da Maçonaria não é já feita em nome da sua pretensa condição de “sociedade secreta” (reduzida a breve e praticamente irrelevante referência), mas sim em função da constatação da existência de consideráveis diferenças de pensamento em relação a várias questões de organização social, de conceção da Sociedade, de valoração e consideração dos direitos e liberdades individuais, entre dois campos: o dos que Leão XIII chama de “naturalistas”, onde inclui os maçons, e o das conceções vindas dos fundos dos séculos, que a Igreja Vaticanista continuava então a defender.
Discordo – não tanto, ou não principalmente, como maçom, mas, afinal, como homem deste século XXI – das conceções expressas na encíclica Humanum Genus. Mas, afirmada essa discordância, impõe-se o reconhecimento de que se trata de um documento notável. Datado, é certo. Expressando ideias políticas e sociais que considero erradas e que felizmente a evolução social reduziu à sua atual insignificância. Afirmando conceções religiosas que são diversas das minhas e que creio até diferentes de muitas das seguidas pelos atuais crentes católicos, mas que só me cabe respeitar e nunca julgar. Traduzindo, genericamente, a expressão de um pensamento ultrapassado pela evolução da sociedade, tem porém o notável mérito de deslocar a discussão do pretexto (“sociedade secreta”) para a verdadeira questão: as diferenças de pensamento, de ideias e ideais, de conceções sociais. E isso merece-me todo o respeito!
Que a maior parte das conceções de Leão XIII (pondo-se de parte as especificamente atinentes às questões religiosas, que não discuto e não entram nesta discussão) se tenham revelado, pouco mais de um século depois, erradas, ultrapassadas, vencidas e varridas pela Modernidade, em prol precisamente das conceções que rejeitava e condenava, dos por ele chamados “naturalistas” e, nestes, dos maçons – é apenas um bónus! Gera alguma satisfação, mas também impõe a consideração de que aquelas ideias, daquele Papa, daquele tempo, não são já as ideias da Igreja Católica atual, que também evoluiu.
E, tal como os maçons de hoje têm todo o direito de se recusar a serem julgados e avaliados pelos eventuais erros dos seus antecessores, de igual modo não devemos julgar a Igreja e o clero de hoje pelo de tempos passados. Sobretudo, porque proclamamos bem alto que Leão XIII estava completamente equivocado, absolutamente enganado, numa coisa: já no seu tempo, e assim continua hoje, a Maçonaria e os maçons não são inimigos da Igreja Católica ou de qualquer outra Igreja, da religião católica ou de qualquer outra religião. A Maçonaria e os maçons consideram todas as Igrejas, todas as religiões, igualmente respeitáveis e todas respeitam, independentemente da crença individual específica de cada um deles.
Afinal, pouco mais de um século passado sobre Leão XIII, é tempo de que se entenda que a Maçonaria e a Igreja Católica, a religião católica, não são inimigos, nem sequer adversários. Pelo contrário, sendo instituições diferentes, têm inimigos comuns: o obscurantismo, a desigualdade, a tirania, o fundamentalismo.
E não há nada de secreto nisto!
Rui Bandeira
Publicado no Blog A partir Pedra